Desapego

 

          — Que é desapego? — perguntei quando era adolescente a uma professora do Ipiranga.

          Ela respondeu, contando esta história:

          Um jovem neófito, almejando a evolução espiritual, fez voto de desapego e pobreza. Renunciou os bens, trabalho e estudos, os únicos pertences eram a roupa do corpo e outra reserva numa bolsa, para as trocas nas lavagens.

          Saiu pelo mundo atrás de mestres iluminados para aprimorar sua alma. Esperava encontrá-los em situações paupérrimas, isolados, esfarrapados, porém felizes.

          Vagou por muitos lugares. Numa ocasião, ao passar por um árido vale, e não encontrando um riacho para saciar a sede, bateu numa casa.

          — Se tem desapego o suficiente, pode me dar um copo de água?

          — Só posso dar meio copo — o estranho respondeu. — Sou desapegado, mas aqui água é escassa. Mas, há um velho mago no próximo portão, é um dos mestres mais desapegados que existe. Ele lhe dará quanta água precisar.

          Seguindo a direção indicada, esperava encontrar o mais singelo dos casebres. Quando chegou, quanta decepção! Havia uma mansão ladeada por opulentos jardins, ao fundo um rico pomar, viçosas plantações, animais... Quanto luxo e fartura... Indignado bateu no majestoso portão pretendendo dar-lhe uma lição de moral. Um dos discípulos que atendeu informou que o mago estava ocupado, pois pregava o desapego aos demais discípulos.

          — Onde está a moral dele?  — perguntou o neófito.

          — Onde a tua não está — respondeu o discípulo.

          “Insulto” — Pensou o neófito.

          — Tenho sede — continuou o neófito. — Se o seu mestre é desapegado o suficiente, pode me dar um copo de água?

          Como era do caráter de todos os discípulos “a caridade é o espírito do desapego”, jamais deixariam um pedinte com sede ou fome. O discípulo convidou para conhecer a fonte.  O neófito ficou surpreso com tanto luxo e beleza, olhava os detalhes: a fonte ricamente decorada com seixos brancos nas margens, a grama bem cuidada. Mais abaixo havia uma pequena piscina de água natural cristalina cavada na rocha, mostrando o fundo os pedriscos de calcário branco.

          O neófito bebeu até se fartar, mesmo achando tudo muito incoerente. Depois de um banho pediu para se encontrar com o mestre.

          Completamente transtornado, estava certo de dar uma boa lição de moral naquele impostor, pois entendia que desapego e riquezas não se combinavam.

          No caminho o neófito não se conteve e perguntou como o mago ficou rico, o discípulo respondeu:

          — Quando o mago apareceu aqui, todos sofriam por falta de água. Ele pediu um lugar para ficar, porém deram o pior. Embora aqui seja árido, o único lugar úmido era um pântano cheio de limbo contaminado, era chamado de “o berço das varejeiras”. Foi o que deram a ele. Mas ele era um sábio! Via o que ninguém via, sabia o que ninguém sabia. Passou muitos anos num exaustivo trabalho de estudar, cavar, drenar e filtrar as impurezas. Cercou a nascente com pedras limpas, retirou tanta água até que transformou numa fonte cristalina e potável.

          — Então ficou rico vendendo água? — perguntou o neófito.

          — Não!  Melhor ele mesmo lhe explicar onde está sua riqueza.

          Aproximaram-se do mestre que meditava no jardim, mas, o neófito cheio de ira o interrompeu aos brados:

          — Sou desapegado, tenho só duas calças e duas camisas, mas o senhor que é o mestre do desapego, por que é dono desta fortuna?

          — Você é dono do que mesmo? — perguntou o mestre abrindo os olhos.

          — Por que tanto luxo? — perguntou trêmulo.

         Vendo que estava diante de um neófito transtornado, pôs em prática sua sabedoria.

          — Ah, sim! Boa tarde — respondeu serenamente. — Posso lhe dizer que nada possuo.

          — Mas este lugar é muito rico! — Exclamou. Porém o mestre pressentia os pensamentos dele: “um impostor que engana com doces palavras, mas por trás está o interesse em vender água”.        

          — Nada do que você vê me pertence — respondeu o mestre. — Não sou dono nem mesmo do meu corpo, tudo pertence a Deus. Ele apenas permitiu que eu usasse por empréstimo por certo tempo, mas, quando eu partir deste mundo, tudo será devolvido.

          O neófito ainda não estava convencido e perguntou:

          — Como construiu tudo isso?

          O mestre o levou à varanda onde a visão era ampla e disse:

          — Este lugar era um pântano contaminado e desprezado, mas fui inspirado a purificá-lo com o trabalho; assim também as pessoas devem retirar as impurezas da mente. Depois de limpa a fonte, fui inspirado a saciar a sede de todos, quanto mais água doava, mais límpida e com mais vazão se tornava. Da mesma forma as pessoas devem  doar tudo de si ao bem. Quando espalhei o limo pelo solo infértil, este lugar ficou fértil, então doei a terra a quem quisesse plantar, por isso há fartura... hoje todos repartem os frutos. Esta casa foi construída pelos trabalhadores apenas para reuniões e meditação. Minha casa não passa do paiol nos fundos. 

          Quando o neófito soube do grande sacrifico do mestre, revoltou-se com os assistidos, considerando-os indignos.

          — Mestre! Eles lhe deram o pior lugar. O senhor trabalhou, sofreu, limpou o pântano, fertilizou a terra, e no final dá pão a quem lhe deu podridão?

          — O desapego é assim mesmo! O verdadeiro desapego não é quando se renuncia aos sacrifícios, quando se vive na miséria, mas quando se sacrifica para conquistas em benefício dos outros. De nada adianta ser desapegado, porém inútil, é preciso que o desapego seja útil aos outros. E o neófito ficou a cismar.

          Na despedida do neófito, o mago perguntou:

          — Perdoe-me, mas quando eu meditava você disse que era dono de alguma coisa, parece-me que de duas calças e duas camisas? 

          O neófito respondeu:

          — Acabei de aprender que não sou dono de nada, Deus apenas me emprestou.